Educação a distância, presente!

Alunos se articulam para enfrentar os desafios de estudar a distância e defender a modalidade frente ao preconceito

Em 1999, Arnaldo Niskier, um dos mais importantes contemporâneos da educação no Brasil, publicou o livro “Educação à Distância: A Tecnologia da Esperança”. Na obra, o autor defende políticas para a criação de um sistema de educação superior acessível e aberto para estudantes de todo o país. Como membro do Conselho Nacional da Educação, Niskier teve um importante papel na elaboração dos artigos relacionados à educação a distância na LDB de 1996. “Ele falava que a educação a distância era a tecnologia da esperança, era a única forma de você pegar o conhecimento da universidade, e jogar lá interior do Tocantins, porque a universidade não conseguia se deslocar. Então ele chamava a Ead de tecnologia da esperança”, relembra Leonardo Viana, pesquisador da Fundação CECIERJ.

Mais de 20 anos depois, a educação a distância não é vista com tanto otimismo pela sociedade. Pelo contrário: os alunos enfrentam estigmas negativos e deslegitimação da modalidade frente a outros setores sociais. No artigo “Cem Anos de Solidão: a Educação a Distância no Brasil – Percepções Negativas Antes e Depois da Pandemia”, Leonardo elenca possíveis razões para esse preconceito, baseando-se em uma extensa literatura sobre educação à distância no Brasil:

1) Regulação insatisfatória: prioridade ao lucro em detrimento da qualidade acadêmica;

2) Qualidade – a preparação de cursos a distância frequentemente ocorre por conversões amadoras de cursos presenciais para o formato virtual;

(3) Descentralização do ensino– contrapõe o modelo tradicional de ensino, em que a figura do professor deixa de ser o centro e o foco passa a ser o aluno; 

(4) Cursos para público de baixa renda– a modalidade a distância foi inicialmente adotada em cursos considerados de baixo valor acadêmico como costura, mecânica etc, para atender às necessidades da sociedade;

(5) caráter de “segunda chance”– para pessoas que não puderam terminar os estudos dentro do tempo "esperado".

Para realizar a pesquisa, Leonardo utilizou a metodologia Teorias de Ágora, que a partir de uma pergunta estímulo, cria uma espécie de “nuvem de palavras” para analisar a representação social de determinados grupos. No artigo em questão, o pesquisador faz perguntas a respeito de como os estudantes que se inscreveram no vestibular do Consórcio CEDERJ enxergavam a modalidade a distância, desde dois pontos de vista: deles próprios, como alunos, com a pergunta “Quais são as cinco palavras que vêm a sua mente quando você escuta Ead?”, e desde a perspectiva da sociedade, ou seja, como o estudante percebe que as pessoas em geral veem a modalidade, com a pergunta “O que você acha que os brasileiros pensam quando escutam a palavra Ead?”. O experimento foi feito pela primeira vez em 2019 e repetido em 2022, para aferir se a visão dos candidatos sobre o Ead variou antes e depois da pandemia de COVID-19.

Os resultados permaneceram quase inalterados nos dois anos. Em 2022, 2,2% dos estudantes classificaram a Ead negativamente, na percepção pessoal, ou seja, como eles enxergam a modalidade. No entanto, quando a pergunta era questionada desde o ponto de vista da sociedade, 43% classificaram negativamente. Entre as principais palavras negativas descritas desde o ponto de vista da sociedade estão: “ruim ou inferior”, “mais fácil”, “preguiça ou incapacidade”.

Para o pesquisador, o resultado destaca como o preconceito contra a modalidade prejudica os próprios alunos. “Tem um ítem específico que saiu muito que é ‘preguiça’, então você não desqualifica a educação a distância, você desqualifica o aluno, que nessa concepção, já que (a modalidade Ead) ‘é mais fácil’ então o aluno é preguiçoso e não quer estudar”, explica. Leonardo ainda completa que esse estigma social negativo pode incidir também nas taxas de evasão da modalidade. “Um dos motivos que a gente considera para a taxa de evasão grande é por conta do preconceito. Então a gente tem um problema que é inclusive dos alunos não verbalizarem que estudaram no CEDERJ, na modalidade à distância, então ele vai carregar esse estigma, porque ele acha que o mercado atua contra, que o mercado não gosta dele, que o mercado acha que ele é preguiçoso, que é mais fácil. Mas na prática os Eads sérios não comportam esse tipo de comportamento, então essa percepção está errada”, alerta.

Leandro Chemalle, estudante da Univesp e presidente do DCE da instituição, acredita que o preconceito contra a modalidade Ead é histórico e vai na contramão de outros países do mundo. “Esse preconceito se arrasta há mais de 20 anos. O Brasil criou essa diferenciação entre estudantes da Ead do presencial, que em outros países não acontece. Inclusive quando a gente vai conversar sobre isso com o aluno de outros países, eles não entendem do que a gente está falando” ressalta Chemalle. Leonardo Viana, que desenvolveu a pesquisa mencionada em parceria com pesquisadores da Espanha, reitera ainda que em outros países, os estudantes da modalidade Ead são por vezes mais valorizados pelo mercado, devido ao nível de foco e autonomia que a modalidade exige do estudante. “Na Espanha os alunos da UNED  (Universidad Nacional de Educación a Distancia) são referências, e inclusive são mais buscados pelas empresas que sabem que eles vão ser autônomos, já que eles sabem gerir o tempo deles”, frisa o pesquisador.

Mobilização estudantil na linha de frente em defesa da modalidade

“O pessoal acha que o ensino à distância é só colocar um vídeo numa plataforma ou entregar um livro e a pessoa vai ser autodidata e não é assim, tem muitas dificuldades nesse caminho ainda”.

Se você leu a segunda reportagem desta série, vai se lembrar da Giovanna Pacheco, estudante de Licenciatura em Letras, na Universidade Federal Fluminense (UFF). Desde que entrou na universidade, além de dividir a rotina entre o trabalho em tempo integral e as atividades regulares da faculdade, Giovanna também faz parte da diretoria do CONCENTRE, entidade que representa os alunos do Consórcio CEDERJ. Para ela, esse é um caminho para reivindicar melhorias nos cursos de graduação Ead e criar uma rede de apoio entre estudantes. “Eu acho que o nosso papel como aluno do ensino superior e como representação estudantil, além de transmitir as informações e demandas, também é permitir ter esse sentimento de pertencimento, de estar realmente na faculdade porque o ensino a distância é muito solitário”, desabafa a estudante.

O CONCENTRE é uma das representações de alunos à distância mais antigos do Brasil. Os primeiros registros de mobilização nas universidades do Consórcio CEDERJ são de 2006, por meio da criação de Diretórios ou Centros Acadêmicos. “Os primeiros membros da diretoria travaram um grandes batalhas, porque ninguém quer aceitar o Ead como ensino, então as pessoas deixavam de fora sempre as pautas Ead, até que tiveram por iniciativa a formação desse grupo que hoje é a maior representação estudantil Ead”, garante Woston Luis da Silva, estudante de administração pública Ead da UFF e atual presidente do CONCENTRE.

O Consórcio CEDERJ é formado por 11 instituições superiores de ensino públicas do Rio de Janeiro, sendo que sete delas possuem cursos Ead ativos no momento. São mais de 40 mil estudantes matriculados, em cursos, em sua maioria, de Licenciatura, Administração e Computação espalhados por 43 pólos no estado. A modalidade pedagógica do consórcio é semipresencial, ou seja, as monitorias são disponibilizadas tanto de maneira virtual quanto presencial diariamente nos polos, para os estudantes que desejam tirar suas dúvidas. As avaliações também são realizadas nos polos, o que faz com que os alunos precisem se locomover até a instituição pelo menos uma vez a cada bimestre.

Mapa dos polos das universidades do Consórcio CEDERJ espalhados pelo Rio de Janeiro. Fonte: Site da Fundação Cecierj

Mesmo com uma história de quase duas décadas de articulação, Woston reconhece que o CONCENTRE ainda sofre com a resistência de alguns alunos e instituições para reconhecer a representação estudantil Ead. “Alguns cursos, ditos mais tradicionais no presencial, (em universidades) como a UFRJ, UENF, tentam travar a formação de centros acadêmicos. Eles querem que os centros acadêmicos presenciais respondam pelos pelos alunos à distância. Só que só quem conhece a realidade do aluno à distância é o aluno a distância”, reforça.

E a realidade ainda é cheia de desafios. Um deles é a manutenção dos polos de apoio presencial, que em sua maioria ficam a cargo de prefeituras municipais. “Em muitos casos, os alunos não têm onde estudar porque muitos prefeitos nem sabem da existência daquele polo e usam isso só como campanha eleitoral”, afirma Woston. A transferência de endereço dos polos também é uma queixa constante dos estudantes, assim como a segurança e infraestrutura nesses locais. “Esses polos acabam precisando de uma reforma feita a partir do governo e os alunos são migrados para outras sub-regiões, que muitas vezes são locais insalubres, são locais distantes, locais perigosos”, comenta Giovanna, que como diretora de comunicação do CONCENTRE, recebe as demandas dos estudantes pelas redes sociais.

A disparidade entre o reconhecimento dos movimentos estudantis presenciais e à distância fica nítida quando se analisa as reivindicações de cada modalidade. Enquanto direitos básicos, como a meia passagem no transporte público, são garantidos para alunos da modalidade presencial há anos, para estudantes da modalidade Ead, essa ainda é uma batalha a ser vencida. “O Estado não nos reconhece como aluno também, alegam que só porque nós somos (da modalidade) à distância não temos direito algumas gratuidades, como auxílio transporte. E muitos só são válidos dentro do município, então se eu moro em um município diferente de onde é a minha graduação, eu não consigo aquela gratuidade de passagem”, destaca Woston.

Outra pauta comum a diversas representações estudantis Ead públicas é a garantia de oferta de bolsas para estudantes da modalidade, sejam elas bolsas permanência, monitoria ou ainda outros tipos de auxílio, como auxílio viagem. Nesse campo, a principal lei é o Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), de 2010, que prevê o oferecimento de bolsas para o custeio de despesas como moradia, alimentação, transporte e creche aos alunos do ensino superior federal.

Essa lei, no entanto, não contempla as universidades públicas que oferecem cursos a distância. A inclusão desses alunos no Pnaes é uma das pautas defendidas pelo DCE da Univesp. “Até existem algumas iniciativas (de bolsa) pontuais em algumas universidades, só que esses programas funcionam como com recurso próprio da Universidade, porque a verba que vem do MEC para assistência estudantil, via Pnaes, ela não pode ser direcionada para estudante matriculado na Ead, e não existe motivo para essa regra”, pondera Leandro Chemalle, presidente da instituição.

Em junho de 2024 foi aprovado pelo Senado o projeto de lei 1.434 que atualiza o Pnaes. Entre outras mudanças, a alteração fixa bolsas que devem ser garantidas em todas as universidades federais, e vincula a destinação de orçamento da União para  programas de assistência como moradia estudantil, transporte, saúde e acessibilidade. Além de estudantes de graduação, o novo Pnaes, sancionado pelo governo federal no dia 3 de julho, também abrange estudantes de mestrado e doutorado, assim como instituições estaduais ou municipais públicas, caso haja recursos disponíveis. Os alunos da modalidade à distância, no entanto, seguem de fora dessa reforma, já que no texto original os benefícios são destinados ao atendimento de estudantes presenciais.

§ 1º A PNAES será implementada de forma articulada com as atividades de ensino, pesquisa e extensão das instituições federais de ensino superior e das instituições da rede federal de educação profissional, científica e tecnológica, com vistas ao atendimento de estudantes regularmente matriculados em cursos superiores presenciais de graduação e em cursos presenciais de educação profissional técnica de nível médio. - trecho retirado da LEI Nº 14.914

Manuella Mirela, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), principal instituição responsável pela articulação do projeto junto a deputados e senadores, justifica que a exclusão dos alunos a distância do Pnaes se deve ao fato de que nem todas as universidades federais possuem cursos a distância pela UAB. “Dentro de uma política nacional, dentro da Lei, como a gente consegue garantir a obrigatoriedade da destinação de recursos para estudantes, se há universidades e institutos federais que não têm (cursos na modalidade Ead)? Então seria uma uma grande dificuldade colocar essa pauta dentro desse texto”, explica Manuella.

Ela afirma ainda que a proposta da UNE para incluir os estudantes no projeto é a criação de um grupo de trabalho com as representações Ead para elaboração de um decreto ou portaria que inclua os estudantes Ead no Pnaes, caso seja aprovado. “A gente pode inclusive discutir a criação de um grupo de trabalho para pensar quais são os pontos mais importantes (para os estudantes Ead.) porque, a questão do meio passe é importante, mas o estudante do Ead muitas vezes tem que ir ao polo uma vez por semana ou de quinze em quinze dias e ele não tem como se alimentar, muitos estudantes inclusive desistem por conta disso, então a gente precisa organizar e concentrar essas pautas de maneira organizada”, argumenta a presidente da UNE.

Para Leandro Chemalle, falta representatividade Ead na composição da UNE, maior entidade estudantil do Brasil. “Como é que um estudante Ead vai se ver representado por uma UNE que só tem estudante presencial, ou por um DCE que nunca dá uma diretoria para um estudante da Ead?” questiona Leandro. 

Formais ou não, grupos de alunos aproximam estudantes da modalidade a distância

Além das articulações estudantis em centros acadêmicos e diretórios, os grupos informais de apoio tornaram-se comunidades importantes para enfrentar os desafios dos cursos Ead. 

Samuel Luna, estudante do curso tecnólogo em Recursos Humanos na UniCesumar, conta que descobriu sobre a carga horária obrigatória de extensão, por meio de grupos de alunos no Facebook. “Eu estava muito focado na faculdade, então eu pensei: ‘vou tentar participar dos grupos de estudantes’ e aí eu vi umas pessoas falando de projetos de extensão”, comenta. Samuel ainda conta que ficou surpreso e ao mesmo tempo aliviado por ter descoberto da exigência de horas extracurriculares pela comunidade, e reforça que se não fossem os grupos de estudantes, talvez ele não soubesse desse critério, o que o impediria de terminar o curso. “Quando eu entendi o que era esse projeto de extensão e fui na plataforma, eu me assustei, porque (antes) não estavam lá as atividades. No momento em que uma lei vale, eu acho que além de me avisar, isso devia estar disponível na plataforma. A instituição está sempre me avisando na questão de notas ou trabalhos, eu acho que poderia ter sido mandado um e-mail para avisar sobre esse projeto, já que é algo que não vai permitir que eu conclua a faculdade caso não fizer”, reforça o estudante. A lei citada por Samuel é a Resolução CNE/CES nº 7/2018, que indica a obrigatoriedade do cumprimento das horas complementares em atividades de extensão para conclusão dos cursos superiores. As IES de todo o Brasil deveriam se adequar até dezembro de 2022.

Por meio dos grupos de Facebook, os alunos também organizaram uma petição pública contra a medida, que conta com mais de 5 mil assinaturas.

Captura de tela do site da petição.

Para Giovanna Pacheco, criar espaços para conversar sobre o dia a dia do curso, algo que se dá de forma orgânica na modalidade presencial, é fundamental para os estudantes da modalidade a distância. “Os alunos se ajudam em muita coisa, porque eu ensino a distância é um ensino solitário, você não vai se formar com os amigos assim, por exemplo, como é na faculdade presencial, você vai seguir um sua rota e ela vai ser sozinha. Então a gente precisa de um ombro amigo, de alguém pra reclamar das matérias”, ironiza a estudante.

Adir da Conceição, formado em Administração Pública na UFF, comenta algumas das iniciativas criadas pelo Centro Acadêmico do curso para apoiar no desenvolvimento desses espaços. “Nós fazemos a recepção dos calouros e reforçamos muito para que eles façam grupos de estudantes, porque isso ajuda muito em uma disciplina que você não entendeu, por exemplo, ou para  pedir uma informação nos grupos, passar os horários das conduções. Às vezes um vai de carro e dá carona para o outro, então nós conseguimos isso dentro do curso da administração pública e estamos agora tentando espalhar isso para os outros cursos também”, comenta Adir. Ele conta ainda, que o movimento estudantil foi responsável por grandes laços que hoje vão além da mobilização acadêmica. “Nós criamos um grupo onde nós conseguimos ter uma afinidade e um apoio ali muito grande, como se fosse no presencial também”, comemora Adir.

Leandro Chemalle, da Univesp, também reforça a importância da mobilização estudantil e deixa um recado os estudantes de todo o Brasil: “O que eu coloco para quem tiver lendo o teu trabalho depois e que está em uma Ead pública ou privada é: se organize para fazer movimento estudantil, crie grupos no Telegram, grupo no WhatsApp, junta todo mundo, crie uma uma entidade estudantil que a gente chama de Diretório Acadêmico de Polo, para cada polo pode ter o seu diretório acadêmico. A organização (estudantil) na Ead hoje é fundamental para levar para a sociedade esse entendimento do que é o ensino superior EaD”.

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Referências de imagens utilizadas nas capas e entre as seções:

Reportagem 1: banco de imagens Brasil com S.

Reportagem 2: arquivo pessoal das fontes.

Reportagem 3: site da Bolsa de Valores do Brasil (B3).

Reportagem 4: banco de imagens da Empresa Brasileira de Comunicação

Repotagem 5: Site e redes sociais da Univesp