Ead S.A.: a educação a distância no Brasil na bolsa de valores

Dez instituições de ensino superior concentram 66% das matrículas na modalidade a distância. Oito delas pertencem a empresas com ações cotadas na B3

Se o pontapé inicial do Ead no Brasil partiu das universidades públicas, em pouco tempo esse cenário foi se modificando. As limitações de incentivo do programa Universidade Aberta do Brasil e outros programas públicos de financiamento da modalidade Ead, aliada à demanda cada vez maior por vagas na educação superior, criaram um espaço de oportunidade atrativo para grandes companhias educacionais privadas, que iniciam um movimento maciço de credenciamento no MEC para oferta de cursos Ead e expansão dos pólos de apoio presenciais. Entre 2015 e 2022, de acordo com dados do Censo da Educação Superior, o número de Instituições de Ensino  Superior (IE’s) privadas cadastradas para oferta de cursos na modalidade a distância cresceu 10 vezes mais do que quando comparado a instituições públicas. Precisamente, as privadas aumentaram em 388% em sete anos, enquanto o ritmo de expansão das universidades públicas foi mais lento, atingindo 31,76% no mesmo período.

A corrida pelo credenciamento das universidades privadas ganhou ainda mais velocidade a partir de 2017, com a promulgação do Decreto Nº 9.057, que atualiza a regulamentação da LDB de 1996 no que diz respeito à educação a distância. Uma das mudanças fundamentais trazida pelo decreto, é a desobrigatoriedade da avaliação in loco nos polos Ead durante o processo de credenciamento e recredenciamento junto ao MEC. Com isso , a avaliação passou a ser feita apenas na sede da universidade, o que permite que as IE’s criem mais polos, em menos tempo. Outra alteração importante presente na nova regulamentação é o fato de que as IE's podem pedir o credenciamento para ofertar cursos exclusivamente na modalidade Ead, sem precisar disponibilizar o mesmo curso na modalidade presencialmente, como anteriormente.

Rita Borges é diretora da Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED) e avaliadora institucional do MEC, e acompanhou de perto essa mudança na regulamentação. “A partir de 2017 os polos passaram a não ser avaliados pelo MEC, porque os polos têm requisitos básicos para funcionamento e nem todos cumpriam com esses requisitos, o que fazia com que no final da avaliação a gente desse um parecer contrário ao ministério. Então, as instituições pressionaram tanto para mudar essa medida que o próprio MEC achou melhor  que os polos não passassem por avaliação. Agora eles têm somente que informar e justificar a criação do pólo em determinada cidade”, explica a professora.

Aliado à desobrigatoriedade de avaliação local, a Portaria Normativa número 11 de 2017, homologada dois meses após o Decreto, amplia também o número de pólos que podem ser abertos anualmente pelas IE’s cadastradas. O novo limite fica condicionado ao conceito institucional da universidade, nota  instituída pelo MEC durante o processo de credenciamento da universidade, que vai de 1 a 5. Para IE’s com conceito 3 o limite são 50 polos anuais, para 4 - 150 e para IES conceito 5 é permitida a abertura de até 250 polos anuais.

O gráfico a seguir mostra a evolução no número de polos de apoio presencial entre 2015 e 2022.

Gigantes da educação concentram mais de metade das matrículas no Ead

O salto no número de pólos abertos nos últimos anos evidencia outra tendência do ensino superior brasileiro, que se acentua ainda mais na educação a distância: a concentração da oferta de cursos em grandes organizações educacionais privadas. Os dados do Censo da Educação Superior de 2022 não deixam margem de dúvida: 66% (dois terços) das matrículas registradas na modalidade a distância no ano estavam concentradas entre 10 instituições de ensino. Todas elas universidades privadas, pertencentes a sete grupos educacionais, dos quais cinco estão listados na Bolsa de Valores.

Por mais que o último Censo tenha evidenciado o movimento de concentração de matrículas Ead, não é de hoje que esse cenário vem sendo apontado por especialistas da área educacional. No artigo  “Tendências de precarização do ensino superior privado no Brasil”, publicado em 2020, o professor Carlos Eduardo Bielschowski, pesquisador da Fundação CECIERJ, analisa os dados do Censo 2018 e conclui: “Esse conjunto de elementos mostra claramente que, mantida a atual tendência, os destinos do ensino superior no Brasil serão ditados pelo movimento de concentração de matrículas em grandes grupos privados com fins lucrativos e pela qualidade do trabalho de EaD realizado por eles. A grande questão é se esse movimento de concentração de matrículas em poucos grupos empresariais com fins lucrativos, com utilização intensiva de EaD, é benéfico para a sociedade brasileira”.

Para Leonardo Viana, também pesquisador da Fundação CECIERJ, essa tendência pode representar um risco para a qualidade dos cursos superiores, uma vez que são os interesses financeiros que direcionam os investimentos das instituições. “De acordo com o professor Bielschowski,  cinco grandes conglomerados de educação que detém a maioria dos alunos de Ead no Brasil e para eles o que importa é realmente o lucro. Então eu preciso encher minha sala para poder arrecadar mais, assim o aluno passa a ser cliente”, destaca.

Rita Borges aponta ainda que uma das principais consequências dessa espécie de oligopólio do ensino superior  é a padronização dos conteúdos didáticos, o que a ela chama de “fordismo educacional”. “Grande parte das instituições que ofertam Ead apostam no material didático, que é comprado pronto de algumas empresas. (...) O material é distribuído de forma igual para várias instituições, então a IE só coloca a sigla dela em cima e divide aquele material em capítulos ou em unidades e vai ofertando dentro do módulo para esse aluno”, alerta. Além desse fator, para Rita, uma das grandes lacunas da educação a distância hoje é a formação de tutores para atuar junto aos estudantes. “O material didático por si só não vai interagir com o aluno. Então, quais são as grandes lacunas do Ead hoje: o material, a formação de tutor, e o tutor atuando junto com o aluno. As instituições não atribuem carga horária para tutoria, não atribuem como o tutor tem que trabalhar numa tutoria efetiva com o aluno. Às vezes você tem um tutor para 500 alunos. Como um só tutor vai poder acompanhar 500 alunos?”,  questiona a especialista. 

Viana também defende a profissionalização da tutoria como caminho para superar o “fordismo educacional”: “O tutor, em geral, faz esse papel de socializar, ele é a ponte, é quem dá a cara humana da educação a distância. Quando você tem a figura do tutor, ele quebra essa ideia de fordismo, porque ele não tá na linha de produção, ele é um ser humano”, observa. O pesquisador ressalta, porém, que investir na valorização e qualificação do tutor gera custo às instituições, e por impactar nos resultados financeiros dessas companhias, nem sempre é priorizado.

A seguir você confere a relação aluno/docente segundo o Censo do Ensino Superior de 2022. Vale destacar que são os docentes que desempenham a função de tutor nos cursos superiores na modalidade a distância

Alunos enfrentam dificuldades no atendimento pós matrícula e evasão precoce

No outro lado desse elo, os “alunos-clientes” reclamam da falta de assistência após a matrícula e principalmente quando precisam trancar o curso.

Tayliny Silva, que você já viu na primeira reportagem desta série, antes de se tornar aluna do curso de desenvolvimento de sistemas na Anhanguera, iniciou o mesmo curso em outras duas instituições, mas precisou trancar por motivos alheios à sua vontade. Foi nesse momento que ela encontrou mais dificuldade. “O pós-venda é horrível. Na hora de vender, eles são muito gentis, te atendem super bem. Mas quando eu precisei trancar, eu fui até o polo em São José, e aí a moça disse: ‘você tem que trancar pelo telefone, pelo financeiro, porque no polo a gente não pode te ajudar’. Então eu já entendi que em todas elas (universidades Ead) trancar é uma coisa impossível, tipo é tipo sair da NET, ninguém consegue”, lamenta a estudante.

Antes de iniciar desenvolvimento de sistemas na modalidade a distância, Tayliny cursou história presencialmente na Udesc, mas não concluiu. Foto: arquivo pessoal.

A estudante faz parte de uma estatística que também foi objeto do professor Bielschowski no artigo “Tendências de precarização do ensino superior privado no Brasil”. Ao analisar as taxas de desligamento e trancamento de matrícula nos dois primeiros anos de curso, Bielschowski concluiu que a taxa de evasão dos alunos da modalidade Ead se acentua entre as 10 maiores instituições privadas do país. “Após dois anos de curso, 55,6% dos alunos dos grandes grupos estavam desligados ou com matrícula trancada, contra 37,6% das demais IES privadas e 29,5% das públicas, ou seja, mais da metade dos alunos que ingressaram em 2017 nos dez grandes grupos privados não estavam ativos ou formados no final de 2018”, destaca Bielschowski no documento. Vale destacar que a lista das maiores IE’s se alterou do Censo de 2018 para o último Censo, de 2022. Se você quiser se aprofundar nessa comparação, pode conferir o artigo na íntegra aqui.

Como possível justificativa para esse cenário, o pesquisador aponta o uso de estratégias ativas para captação de alunos, que muitas vezes tem o perfil socioeconômico mais vulnerável, com “campanhas maciças na grande mídia e valores baixos de matrícula para os primeiros meses.” Para Leonardo Vianna, essa é uma estratégia que faz parte do modelo de negócio das grandes companhias educacionais: “As instituições sabem que o ponto do lucro está no primeiro e segundo semestre depois não, então por vezes a instituição investe nesse início dessa jornada, aí enche de matrícula e depois vira um funil, porque ela sabe que vai ter desistência”, constata numa referência direta à análise do professor Carlos Bielschowski, seu colega da Fundação CECIERJ.

Além das dificuldades para trancamento, os alunos relatam ainda outros desafios de contato com as instituições. Luis Carlos Farias, estudante de marketing digital na UniDombosco e personagem da nossa segunda reportagem, relata que seu polo de apoio foi fechado sem aviso prévio. Luis descobriu o fechamento quando precisou marcar a data de uma avaliação, que seria presencial. “Eu não consegui marcar pelo AVA (ambiente virtual de aprendizagem), como sempre fazia, então resolvi ir direto no espaço onde é o polo, por que eu já conhecia as pessoas ali, então pensei ‘vou tentar ao vivo fazer o agendamento’. Quando cheguei lá tinha uma placa ‘Aluga-se’”, conta Farias.

No sistema do E-MEC, o polo de Biguaçu da UniDombosco segue em atividade. Foto: Google Maps.

Para Leonardo Viana, reforçar a regulamentação da modalidade Ead é o caminho para garantir a qualidade dos cursos e evitar esse “abandono institucional" após a matrícula. “O produto de um educador, de um de uma universidade é o conhecimento. Então se os alunos não terminarem com o conhecimento, ele está enganado, né? Ele passou quatro anos sendo enganado. Então a nossa questão é justamente isso, que a regulamentação seria uma forma de você criar um ambiente de franqueza onde as pessoas possam realmente aprender de fato”, declara o pesquisador.

Já Rita Borges acredita que, além de estabelecer regras mais estritas para criação dos cursos, é preciso melhorar também o sistema de avaliação do ensino superior para identificar os cursos de baixa qualidade, evitando o descrédito do Ead. “Nós entendemos que existem sim cursos a distância de qualidade duvidosa. Mas por outro lado quais são os parâmetros que o MEC instituiu para aferir essa qualidade? O único parâmetro que o MEC tem é o exame Nacional, o ENADE, que é o mesmo para o presencial, então a gente não tem uma métrica específica para aferir essa qualidade (na modalidade a distância). Nós temos alguns indicadores de qualidade que são de 2007”, enfatiza Rita.

A diretora da ABED ainda reitera os esforços da associação para dialogar com o MEC e as instituições de ensino, em prol da oferta de uma educação a distância cada vez mais qualificada. “Têm grandes grupos (educacionais), que até se distanciam da ABED, por que a gente discute a educação à distância de forma séria e eles estão preocupados em vender cursos e não em discutir a educação a distância”, confessa Rita.

O MEC, por sua vez, tem adotado uma postura mais crítica com relação à modalidade a distância a partir da transição do governo, realizada em 2023. Uma série de medidas nas áreas de avaliação e regulamentação do ensino superior foram adotadas, entre elas, a criação de um novo marco regulatório  para a modalidade Ead. A discussão que culminou na revisão das regras da modalidade é o tema da próxima reportagem desta série. Vamos lá?!

Próximas reportagens

De consulta pública à nova regulamentação: os movimentos recentes do MEC com relação à Ead no Brasil

Desde 2023, o debate sobre as condições de oferta dos cursos na modalidade a distância vem ocupando cada vez mais espaço na pasta da educação

Educação a distância, presente!

Alunos se articulam para enfrentar os desafios de estudar a distância e defender a modalidade frente ao preconceito


Reportagens anteriores

À distância: o novo horizonte da educação superior no Brasil

Número de ingressantes na modalidade cresceu 471% em uma década. O ganho em acesso à educação é visível, mas ainda há críticas sobre a qualidade do ensino

Do MarketING ao marketing digital: a evolução da educação a distância no Brasil

Com mais de 100 anos de história, a educação à distância hoje é a principal modalidade para cursos como os de Licenciatura