De consulta pública à nova regulamentação: os movimentos recentes do MEC com relação à Ead no Brasil

Desde 2023, o debate sobre as condições de oferta dos cursos na modalidade a distância vem ocupando cada vez mais espaço na pasta da educação

Em outubro de 2023, o Ministério da Educação (MEC) divulgou os resultados do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE) 2022, principal avaliação do desempenho dos alunos nos cursos de formação superior no Brasil. 

Na ocasião, o ministro Camilo Santana anunciou uma série de iniciativas com o objetivo de garantir a qualidade do ensino superior brasileiro e admitiu a deficiência do ministério na supervisão da oferta diante do aumento no número de matrículas. “Posso dizer que há um esforço enorme do MEC, mas acho que não é suficiente hoje. O MEC não tem perna suficiente para fazer essa supervisão da forma necessária para garantir a qualidade dos cursos”, admitiu. Entre as ações anunciadas pelo ministro no evento, estavam a criação de uma agência reguladora para o ensino superior, projeto que ainda não foi apresentado formalmente, e a criação de uma avaliação anual para os cursos de licenciatura, o ENADE licenciaturas, cuja primeira edição vai acontecer neste ano.

A seguir você confere uma tabela comparativa com a média das notas obtidas por instituições de ensino superior no ENADE 2022, divididas por modalidade de ensino e categoria administrativa.

Dias antes da divulgação dos resultados do ENADE, o MEC abriu uma consulta pública para ouvir entidades e especialistas a respeito de duas propostas. A primeira diz respeito ao Conceito Institucional (CI) mínimo para credenciamento da instituição no MEC. A proposta sugere permitir que apenas Instituições de Ensino Superior (IE’s) com conceito institucional a partir de 4 possam ser credenciadas ou recredenciadas para ofertar cursos na modalidade EaD. A nota mínima em vigor hoje é 3.

Já na segunda proposta, o MEC sugere que cursos com carga horária presencial obrigatória superior a 30% das horas totais do curso não poderão ser ofertados a distância. Com isso, cursos que já estão disponíveis pela modalidade, como Enfermagem,  Educação Física (bacharelado) e Nutrição, não poderiam mais operar no regime Ead, e novos cursos, sobre os quais se discute a possibilidade de passarem a ser ofertados também a distância, como Direito, Odontologia e Psicologia, seriam proibidos definitivamente.

Para Leandro Chemalle, estudante da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp) e presidente do DCE da universidade, a autorização para abertura de cursos de Direito Ead seria uma virada de chave para a modalidade. “A gente tem como bandeira a criação do direito Ead pela Univesp, para que a Univesp tenha o primeiro curso público de direito Ead do Brasil. Porque o direito é o curso com maior número de matrículas, então,  quando você liberar o direito Ead você vai fazer com que o pêndulo da modalidade (a distância) pese ainda mais em relação ao presencial. Então, (o direito) é um curso chave em relação à situação do Ead no Brasil e é por isso que tem tanto lobby da OAB para não permitir (a oferta de direito na modalidade Ead)”, denuncia.

Trecho do Caderno de Resoluções advindo do primeiro Congresso de Estudantes da Univesp. Acesse o documento na íntegra aqui. Foto: Instagram/DCE Univesp

Os resultados da consulta pública, que teve quase 15 mil contribuições, no entanto, foram divulgados de maneira superficial pelo Ministério da Educação. No final de novembro de 2023 a pasta anunciou uma portaria suspendendo o credenciamento de universidades com conceito institucional inferior a quatro, além de suspender também a autorização para criação de 17 cursos superiores na modalidade ensino a distância, entre eles novos cursos de licenciatura e da área da saúde. A medida, que teria vigor inicial de 90 dias, foi estendida até o final de maio de 2024.

Novas regras para licenciatura: cursos passam ter limite de 50% na carga horária a distância

Em meio às polêmicas, em abril deste ano o Conselho Nacional de Educação (CNE) emitiu um parecer que altera as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior de Profissional do Magistério da Educação Escolar Básica. Entre outras mudanças, as novas regras limitam a 50% a carga horária de atividades a distância nos cursos de licenciatura. Após a publicação, dirigentes universitários, entidades e alunos se manifestaram contra o parecer do Conselho, que segundo esses grupos, pode gerar evasão em massa e fechamento de cursos de licenciatura a distância por todo o país. De acordo com dados do Censo da Educação Superior de 2022, a modalidade Ead representa 64% dos estudantes matriculados em cursos de licenciatura no Brasil e mais de 80% dos ingressantes em 2022.

Em carta aberta, a ABED solicita a revisão do parecer, que, de acordo com o documento, “provocará uma redução drástica no número de professores formados no Brasil nos próximos anos”. Confira a Carta da ABED na íntegra.

Em entrevista ao jornal Estadão, Vahan Agopyan, secretário estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação do estado de São Paulo, afirma que com a medida, seria inviável manter a operação da Univesp  para os cursos de licenciatura. “Vamos ter que fechar os cursos de licenciatura em educação a distância públicos. Não tem condições de oferecer 50% presencial”, avalia. A Univesp é a maior instituição pública que oferta cursos Ead no Brasil, e única universidade pública no ranking das 50 instituições superiores com maior número de matrículas na modalidade, segundo o Censo da Educação Superior de 2022, ocupando a 12ª posição.

Segundo o levantamento “Univesp em Números” mais recente, em 2023, 28 mil dos 68 mil alunos matriculados na instituição cursavam graduação em licenciatura. Esses alunos se espalham por 427 polos, tanto em cidades do interior quanto em São Paulo capital.

Em março deste ano, a Univesp realizou a primeira formatura de 2024, com a presença de 700 formandos, representando 7 mil concluintes dos cursos de Letras, Matemática, Pedagogia, Ciência de Dados, Engenharia de Computação, Engenharia de Produção e Tecnologia da Informação.

Uma das estudantes presentes na solenidade é Marilena Maria de Moura, que concluiu o curso de pedagogia no final de 2023. “Eu tinha vontade de fazer um curso superior, mas presencial ia ser impossível para mim, trabalhando fora e tendo que cuidar dos meus filhos”, recorda Marilena. Ela reitera também os desafios enfrentados para concluir o curso, que iniciou em 2017. “Eu entreguei todas as matérias do curso no final de 2021, mas o que complicou foram os estágios, que eu tive que sair do meu emprego para fazer. Muita gente desistiu, mães assim como eu, donas de casa ou que trabalham. Mas com muito esforço eu persisti e consegui concluir nos 45 do segundo tempo”, conta Marilena.

“Estar na formatura foi uma sensação de vitória, de orgulho e de alívio também, porque o curso quase jubilou”, relata Marilene. Foto: arquivo pessoal

Mesmo com as reações contrárias ao parecer do CNE, no dia 27 de Maio, o ministro Camilo Santana homologou a decisão do Conselho, tornando válidas as novas Diretrizes Curriculares para formação de professores. Na prática, além dos estágios e da avaliação, que já deveriam ser feitos presencialmente antes da medida, parte dos conteúdos teóricos terão que ser ministrados presencialmente. As universidades têm dois anos para se adaptar ao novo currículo.

Para a Magna do Carmo Silva - Pró-Reitora de Graduação da UFPE e representante da  Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior no Brasil (Andifes), a aprovação das novas diretrizes traz à tona uma discussão ainda mais profunda sobre a necessidade de uma reconfiguração da Ead no país, principalmente na esfera pública. “De forma geral, precisaria de uma atenção da UAB/Capes para viabilizar essa carga horária a mais na presencialidade, com qualificação dos polos e investimentos em formação docente, auxílio para estudantes e infraestrutura da sede, através de recursos específicos”, declara.

Rita Borges, diretora da ABED e avaliadora do MEC, critica o posicionamento do ministério. “O que falta mesmo (para garantir a qualidade nos cursos de licenciatura) é fiscalizar melhor, criar indicadores de qualidade para que a gente possa efetivamente mostrar quais instituições têm cursos de qualidade e quais não. E as que não têm vão ter que ser penalizadas. Mas nesse caso, o que aconteceu foi que o MEC penalizou todo mundo. Inclusive as universidades públicas, a UAB, que democratizou o acesso à educação superior, principalmente na formação de professores. Hoje, ela não pode mais fazer isso porque 50% presencial 50% à distância é muito difícil de você realizar”, assegura Rita.

Para a especialista, a preocupação com a qualidade nos cursos de licenciatura atinge ambas modalidades, não apenas o Ead. “O que é que acontece é que o MEC atribui que a licenciatura Ead que é ruim. Só que para a gente que é avaliador, a gente que é pesquisador, especialista do MEC, a gente vê que não são as licenciaturas só Ead que estão ruins, mas presenciais também”, observa.

Rita ainda alerta para o risco de esvaziamento nos cursos de licenciatura a partir da medida. Outros dirigentes da educação superior também advertem para esse cenário a partir da decisão do MEC. Uma delas é a professora Susan Aparecida de Oliveira, Secretária de Educação a Distância da UFSC:  “O problema é que a impossibilidade de cumprir a frequência (presencial), que afeta os estudantes Ead, também não vai impactar positivamente os cursos presenciais. Ou seja, os alunos que deixam de frequentar um curso a distância, justamente porque não conseguem ir, então eles também não vão frequentar o presencial, que vai exigir deles uma dedicação de tempo ainda maior”, reforça.

Para ela, não é só a Ead que precisa de ajustes, mas também os programas de incentivo para a permanência de estudantes nos cursos presenciais. “Eu não digo que não precise repensar a Ead, é preciso, mas nós também não estamos propondo  políticas mais ativas para a manutenção de estudantes no presencial. Então isso é perigoso, nós podemos ter um esvaziamento do ensino superior como um todo muito grande”.

Outras instituições, como o Todos pela Educação, no entanto, são favoráveis à homologação das novas diretrizes para formação de professores. “A gente considera importante essa restrição da carga horária a distância dado à característica dos cursos de formação de professores que precisam muito dessa presencialidade”, afirma Natália Fregonesi, Coordenadora de Políticas Educacionais da instituição. Para ela, o motivo principal de um possível cenário de esvaziamento de professores não é a limitação dos cursos na modalidade a distância. “Se esse apagão docente acontecer, e realmente ele pode acontecer, porque hoje a gente já tem problema de falta de professores em algumas disciplinas e regiões, ele não vai acontecer por conta da limitação do Ead, ele vai acontecer por conta de uma carreira que não é atrativa. Então, os jovens cada vez menos estão querendo se tornar professores”, reitera Natália.

Já a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE), apesar de se posicionar contrária às novas diretrizes e a favor da retomada das diretrizes curriculares 2/2015, que segundo a presidente da instituição, Suzane da Rocha, dão mais autonomia para as universidades construírem suas propostas pedagógicas, defende que a formação de professores deve ser preferencialmente presencial. “Não é uma pauta de consenso na entidade, mas o entendimento que se tem é de que a formação seria preferencialmente presencial, reconhecendo que em algumas regiões nós não conseguimos chegar com a universidade, com um curso presencial e que, excepcionalmente, nesses locais a formação poderia ser a distância. Mas isso não significa, por exemplo, que em Florianópolis exista pólos de educação à distância (para cursos de licenciatura), porque em Florianópolis, você tem a UDESC, que é estadual, a UFSC, federal, e outras universidades privadas presenciais.”, defende Suzane.

A professora Cláudia Costin, presidente do Instituto Singularidades, também é favorável à medida, e faz um paralelo com a educação na Finlândia para justificar seu posicionamento. “Eu acho que o Brasil tem que correr o risco de ficar com menos professores, mas formar direito. A Finlândia fez algo parecido no passado: elevou a nota de corte para ter acesso a cursos de formação de professor”. Cláudia explica que a diminuição na oferta de docentes criou um efeito de escassez e consequente valorização da profissão no país. “No Brasil hoje, segundo o questionário do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), só 2,4% dos jovens brasileiros de 15 anos querem ser professores. Quando você olha para esses países que têm bom sistemas (de educação superior), o percentual é bem mais alto de jovens que querem ser professor, ou seja, o Brasil não valoriza a profissão de professor, e com esses cursos mais precarizados torna-se mais difícil ainda ter a valorização da profissão de professor”, alerta.

Novo marco regulatório para Ead já tem data para conclusão

Após diversas discussões sobre a rigidez da regulamentação e dos critérios de avaliação da educação a distância nos cursos superiores, no dia 07 de Junho, o Ministério da Educação publicou a portaria nº 528/2024, que estabelece 31 de dezembro de 2024 como prazo para definição de um novo marco regulatório para a modalidade, além de novos referenciais de qualidade para cursos a distância. A decisão ainda retoma o veto para a criação de novos cursos superiores Ead, além de suspender também a expansão de polos e vagas até março de 2025. 

Buscamos o Ministério da Educação para comentar a medida, porém, a pasta não se manifestou até a data da publicação desta série de reportagens.

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