À distância: o novo horizonte da educação superior no Brasil
Número de ingressantes na modalidade cresceu 471% em uma década. O ganho em acesso à educação é visível, mas ainda há críticas sobre a qualidade do ensino
Salas de aula cada vez mais virtuais, configurando um novo tipo de ambiente de aprendizagem. Essa é a realidade do ensino superior brasileiro, que em 2022, chegou a marca de 65% de ingressantes na modalidade a distância. Não é a primeira vez que isso acontece. Segundo dados do Censo da Educação Superior divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), desde 2020 o número de alunos que optam pelo Ead para iniciar seus estudos supera os estudantes da tradicional modalidade presencial, com alunos e professores em contato direto, físico e síncrono.
Mais do que uma escolha, para milhares de estudantes brasileiros, a modalidade Ead é a única oportunidade de acesso à universidade, tanto pela flexibilidade de horários, que possibilita que os estudantes trabalhem em tempo integral durante a graduação, quanto pela oferta de cursos superiores disponíveis na região onde o aluno reside. Ainda segundo o Censo da Educação Superior de 2022, em 1.895 (34% do total) dos 5.565 municípios brasileiros os polos de educação a distância são a única oferta de ensino superior disponível.
É o caso de Sapezal, no Mato Grosso, onde Karla Nunes concluiu o curso de licenciatura em matemática na modalidade Ead, pelo Instituto Federal do Mato Grosso (IFMT). “Aqui no meu Município nós não temos universidades (presenciais), então a nossa única oportunidade de estudo é via Universidade Aberta do Brasil, tanto pelo IFMT quanto pela Unemat. Eu me lembro que quando abriu o edital, eu pensei que iria agregar muito na minha área de atuação, foi quando eu me inscrevi”, destaca. Karla é técnica em desenvolvimento infantil e atua como intérprete de libras para alunos surdos. Ela foi estudante da primeira turma do curso de matemática a distância do IFMT, que hoje está presente em 13 polos no estado, com 493 alunos matriculados. Desde que se formou, Karla fez outro curso superior, pedagogia, e uma especialização em educação inclusiva, todas elas à distância.
Com o avanço da interiorização do ensino superior impulsionado pela modalidade a distância, os cursos de graduação passaram a atrair estudantes cada vez mais diversos. Enquanto no presencial, 69% dos estudantes têm até 24 anos, no Ead, a faixa etária mais expressiva é de alunos entre 25 e 39 anos, que correspondem a 49% dos ingressantes em 2022. Já com relação à renda familiar, 76% dos estudantes da modalidade a distância possuem rendimentos familiares de até 4.5 salários mínimos, enquanto para os estudantes presenciais, essa faixa é de 65%, segundo o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE) 2022.
Com relação à oferta desses cursos, a iniciativa privada é a líder disparada da modalidade, com 96% dos alunos matriculados em graduações a distância. Isso se deve, em grande parte, às mudanças realizadas em 2017 na regulamentação da Lei nº 9.394, a Lei de Diretrizes e Bases para Educação (LDB), considerada a carta magna da educação brasileira. Neste ano, foram alteradas uma série de regras para o credenciamento de instituições superiores e abertura de polos de apoio aos cursos a distância, obrigatórios para a oferta de cursos nessa modalidade. Essas modificações facilitaram a expansão de instituições superiores e criação de novos pólos de apoio presenciais, dando mais velocidade ao processo de a expansão da modalidade a distância ou semipresencial no Brasil. Confira no mapa a seguir a quantidade de alunos ingressantes no Ead por município em 2022.
Por outro lado, as universidades públicas ainda sofrem com limitações orçamentárias para a criação e manutenção de novos cursos à distância. Nessa esfera, a principal fonte de recursos para a abertura de cursos à distância é o programa Universidade Aberta do Brasil (UAB), criado em 2006, que por meio de editais da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) disponibiliza bolsas para que professores e técnicos atuem em cursos de educação a distância.
Atualmente, mais de 120 mil alunos estão matriculados em instituições públicas que ofertam cursos no sistema UAB no Brasil. João Vianney, autor do livro “A Universidade Virtual no Brasil” e especialista em educação a distância, alerta: “o problema da UAB é que, na verdade, ele é um programa de financiamento temporário, você financia a oferta de um curso, mas quando o governo restringe o financiamento, aquele curso desaparece. Então você acaba não tendo uma estabilidade institucional, algumas universidades criaram um departamento específico de Ead, então ele não é sazonal, mas a maioria da universidade pública depende do financiamento do MEC para fazer cursos pela UAB.” Além da UAB, iniciativas estaduais como a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp) e a Fundação Centro de Ciências e Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro (Fundação CECIERJ), por meio do Consórcio CEDERJ, trabalham para ampliar a oferta de cursos públicos na modalidade a distância.
Modalidade Ead ainda enfrenta preconceitos
“Tem muitos que acham que a gente tem as mesmas oportunidades de estudar, de se mudar de uma região, viver naquele mundo da universidade que não é o nosso, nós não podemos ‘só estudar’, não é assim, a gente tem nossos afazeres, tem uma vida fora desse âmbito escolar”.
O desabafo é da estudante Giovanna Pacheco, que cursa Licenciatura Letras na Universidade Federal Fluminense (UFF), pólo Nova Iguaçu-RJ. Assim como ela, outros alunos relatam conviver com manifestações de preconceito contra o ensino à distância, que carrega o estigma de ser “mais fácil” e que, portanto, a formação teria menos valor quando comparada à modalidade presencial.
Para João Vianney, parte desse preconceito está enraizado em um conflito teórico-político a respeito da mudança na modalidade pedagógica trazida pelo ensino à distância. “Essa premissa de que eu tenho que ter uma pessoa para ensinar a outra é a negação da possibilidade do ser, ou seja, ela presume que você é burra, que você só vai aprender se tiver uma inteligente ao teu lado. A premissa da Ead é que todo ser humano é potencialmente capaz de aprender tendo acesso a meios apropriados. E a grande evolução, é que hoje a internet permite que o meio apropriado leve o professor para junto da pessoa”, alega o especialista.
O preconceito contra a modalidade também foi objeto de pesquisa de Leonardo Viana, professor da Fundação Getúlio Vargas (FVG) e pesquisador da Fundação CECIERJ. Segundo ele, há duas perspectivas que explicam esse estigma negativo. “Existe um preconceito com parte da academia, pelo deslocamento da figura central do professor para o aluno, então a própria academia tem essa resistência. Por parte da sociedade de uma forma geral, o Brasil começou com cursos vistos como de baixa qualidade acadêmica, com o Instituto Universal Brasileiro, com cursos que resolviam um problema específico, por exemplo, curso à distância de técnico em eletrônica, mas resolvia um problema, não precisava mais do que aquilo”. Leonardo ainda completa que o debate deve se centrar na qualidade na oferta da Ead e não no questionamento da própria modalidade. “Na minha concepção não existe ser contra ou a favor da educação a distância, o que existe é ser a favor de cursos de alta qualidade e ser contra aqueles de baixa qualidade”, afirma.
A deslegitimação da modalidade se acentuou ainda mais com a expansão nos últimos anos. O cenário atual é de uma regulamentação frágil e instrumentos de avaliação defasados, que não impedem a criação e manutenção de cursos a distância de baixa qualidade. Rita Borges, diretora da Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED) e avaliadora institucional do MEC, enfatiza necessidade de supervisão da modalidade. “O que falta mesmo é fiscalização melhor, é criar indicadores de qualidade para que a gente possa efetivamente mostrar quais instituições entregam um ensino de qualidade e quais não. Então aquelas que ofertam cursos ruins vão ter que ser penalizadas”, sinaliza Rita.
Em meio às discussões que envolvem a popularização do ensino a distância, estão milhares de estudantes em defesa da modalidade e das oportunidades que ela possibilita. Nos últimos anos, os movimentos de representação estudantil Ead se multiplicaram, tanto formalmente, por meio da criação de centros e diretórios acadêmicos, quanto de maneira informal, através de grupos de comunicação onde os alunos conversam sobre as demandas dos cursos.
Uma das entidades formada durante a pandemia foi o DCE da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp), maior universidade pública Ead do Brasil. Leandro Chemalle, presidente da instituição, destaca que, para ele, a defesa da educação a distância deveria ser uma pauta de todos os estudantes. “O estudante do presencial jovem hoje, se ele lutar por um ensino a distância melhor, ele está fazendo uma luta em benefício próprio. Mesmo não pensando em fazer Ead hoje, quando ele tiver 32, 33, ele vai buscar essa modalidade, então a luta pela Ead pública, gratuita e de qualidade, ela é uma luta que não só dos estudantes da EAD, é uma luta de todos”, defende Leandro.
O estudante viveu na própria pele a experiência que relata. Formado em Ciência da Computação presencial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em 2006, Leandro voltou às salas de aula em 2020 para complementar sua formação, dessa vez, diretamente da sua casa, na zona norte de São Paulo. “A gente faz uma provocação que a Ead vai ser a próxima modalidade para qualquer estudante presencial hoje, porque o mercado exige uma diversidade de formações e a vida não permite que o aluno fique por anos em uma universidade presencial”, afirma. Para ele, frente aos desafios que o Ead vem enfrentando, fortalecer a representação estudantil é essencial para garantir a manutenção da modalidade. “Estruturar o movimento estudantil da Ead, hoje é uma obrigação social, uma obrigação de defesa para que a gente tenha um sistema de ensino superior brasileiro melhor no futuro”, reitera Leandro.
Já para Giovanna Pacheco, que além de estudante é diretora do CONCENTRE, entidade que representa os estudantes do Consórcio CEDERJ, além de política, os movimentos estudantis Ead também têm um importante papel na criação de comunidade entre os discentes. “Os alunos se ajudam em muita coisa, porque o ensino superior (a distância) é um ensino triste, é um ensino solitário, você não vai se formar com os amigos, por exemplo, como é na faculdade presencial, você vai seguir um sua rota e ela vai ser sozinha. Então a gente precisa de um apoio, a gente precisa de um ombro amigo, de alguém pra reclamar das matérias”, comenta Giovanna.
Por trás das telas: quem são os estudantes da modalidade Ead hoje?
Tayliny Silva estuda Análise e Desenvolvimento de Sistemas Ead, na Anhanguera, e está no primeiro semestre. Poderia estar no terceiro. Mais que isso, poderia já ter em mãos seu primeiro diploma, Licenciatura em História, na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Poderia, no subjuntivo. Não foi por falta de tentativas que Tayliny deixou de colocar essas frases no afirmativo.
“Eu estava fazendo história na UDESC e tive que trancar no último semestre por questões financeiras. Eu tinha feito TCC, tinha entregue tudo e só faltava terminar o último semestre, mas não consegui. E aí estou tentando voltar desde então, isso foi 2016/17”, explica a estudante. Tayliny mora em São José, na parte continental da Grande Florianópolis e conta que para assistir às aulas presenciais noturnas no campus da UDESC, localizado na ilha, teve que trocar duas vezes de emprego, o que afetou diretamente sua renda. “Quando eu comecei a fazer história, eu trabalhava oito horas por dia, como auxiliar de escritório, e eu tive que abrir mão porque não conseguia chegar a tempo nas aulas, eu sempre perdia o primeiro horário e estava reprovando muito”. Depois de sair do escritório, Tayliny seguiu para o telemarketing e, por último, tentou ainda se manter como bolsista da universidade, mas com o baixo valor da remuneração, as contas começaram a ficar no vermelho. “Eu consegui segurar por um por uns três anos da faculdade presencial, mas depois começou a bater as contas em casa, os meus pais começaram a fazer algumas cobranças. Então, por mais que seja uma faculdade pública, eu não consegui permanecer na faculdade e lá na minha época a bolsa ainda era R$ 400, né?”, aponta Tayliny.
Tayliny e o companheiro Taz optaram se dividir entre modalidades para garantir que ambos tenham diploma de curso superior, sem afetar a criação do Benício. Foto: arquivo pessoal.
Para a mãe do Benício, de três anos, mais do que uma escolha, a modalidade Ead foi o caminho para voltar a estudar. “Esse rolê todo (da graduação Ead) começou quando eu estava grávida, porque foi um desespero, eu não terminei a minha primeira faculdade e eu precisava terminar alguma coisa”. Nesse momento, Tayliny e o companheiro, Taz Assunção, traçaram um plano para que ambos conseguissem concluir um curso superior, sem afetar o orçamento da casa nem a criação do Benício. “Hoje a gente priorizou fazer assim: eu fico no Ead e o meu companheiro vai para o presencial. Nós dois temos que ter diploma, só que um dos dois tem que ficar em casa pra quando precisar, porque pelo menos uma vez no ano, ele (Benício) vai ficar doente, isso sendo muito otimista”, explica Tayliny.
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Já para Danielle Ramos da Silva, a graduação de Design Gráfico é um caminho para se qualificar ainda mais na profissão. A carioca trabalha com produção gráfica, criando artes para convites, cartões de visita e topos de bolo. “Eu achei um vídeo no Youtube de uma moça que já trabalhava nessa arte da papelaria. Então eu me interessei muito e falei ‘eu quero fazer isso também’, foi quando eu comecei, com a impressora na mesa da minha sala mesmo. Hoje já dei um passo bem grande”, conta Danielle.
Para ela, a escolha da modalidade foi motivada pela acessibilidade que o Ead permite. “Eu sou portadora de deficiência física, então como eu tenho dificuldade de locomoção eu preferi fazer distância”, declara. A estudante está cursando o primeiro semestre do curso, no polo Unicesumar de Piabetá, região na baixada fluminense. A partir do próximo ano, ela passa a ter avaliações presenciais no local, o que gera a preocupação sobre o acesso ao espaço. “Eu perguntei antes de me inscrever. Eu sempre pergunto, por causa desse probleminha da acessibilidade, porque é complicado. Eles falaram para mim que estão adaptando, que estão se preparando para que ano que vem eu possa ter uma acessibilidade lá no curso”, afirma Danielle.
Danielle terminou o ensino médio em 2009 e encontrou no ensino a distância uma oportunidade de se especializar na profissão de designer. Foto: arquivo pessoal.
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Primeiro membro da família a concluir o ensino superior, Adir da Conceição terminou no final de 2023 o curso de Administração Pública Ead na Universidade Federal Fluminense (UFF). Ao longo dos quatro anos de graduação, o estudante traçou uma luta em prol da representação estudantil Ead. Hoje, mais do que a conquista do diploma, Adir também celebra os avanços alcançados em nome dos estudantes da modalidade, por meio do Centro Acadêmico de Administração Pública (CA3E), do qual foi vice-presidente. “Nós participamos da eleição da reitoria, conseguimos trazer a eleição do DCE (Diretório Central dos Estudantes) para o voto online também, porque nós não tínhamos essa participação. Participamos das reuniões do colegiado de curso e também estivemos presentes no Congresso da UNE, em Brasília. Então, conseguimos levar a representatividade estudantil a distância a um nível que as pessoas não imaginavam que poderia chegar”, ressalta Adir com orgulho.
Adir ainda conta que a sua experiência na universidade inspirou amigos e também as duas irmãs a iniciar os estudos. “Se não fosse a modalidade Ead eu não conseguiria realizar esse sonho. E através disso, eu consegui trazer minhas duas irmãs para poder participar, trouxe amigos para poder participar, pessoas que têm a mesma realidade que a minha, são pai ou mãe de família, pessoas que têm que trabalhar para poder manter a sua renda”. O amigo “influenciado” por Adir é Woston Luis da Silva, atual presidente do CONCENTRE, grupo que representa os estudantes do Consórcio CEDERJ, que engloba onze universidades públicas do Rio de Janeiro. “Eu sempre tive o interesse de ingressar em uma universidade, só que o contexto social não ajudava muito, então eu passei uns anos protelando a entrar na graduação até que um grande amigo meu me incentivou, junto com a minha esposa, e eu ingressei no curso de Administração Pública”, conta Woston.
Woston, Adir, Danielle e Tayliny são alguns rostos por trás dos números que estampam pesquisas do Ministério da Educação e matérias jornalísticas sobre o crescimento da modalidade Ead. Nessa série de reportagens, você vai conhecer de maneira mais aprofundada os desafios e oportunidades que o ensino à distância representa, em um país onde apenas 2 em cada 10 adultos entre 24 e 35 anos possui ensino superior completo, segundo o MEC. Vamos lá?!
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